HINO À CONCEIÇÃO FERIDA, MAS LIBERTA

(Em Honra das “Conceições” que rompem o Silêncio)

Não do granito ou do bronze se faz este monumento,
Mas da matéria frágil e eterna da memória,
Da coragem que arranca, com o próprio sofrimento,
A erva daninha do segredo e da falsa glória.

Falas de uma criança que a inocência lhe foi roubada,
Em um tempo de véus, de silêncios cúmplices e pesados,
Onde a culpa, à rédea solta, andava disfarçada
Em temores rezados, em dogmas mal-usados.

Mas da semente podre, enterrada na escuridão,
Brota, por fim, um caule de luz, tortuoso e santo,
É a voz que se liberta da própria perdição,
É a lança que transpassa o mais espesso manto.

Aos catorze anos, a consciência, ferida bruta,
Um desgosto de morte, um abismo por dentro.
A alma, uma paisagem absoluta e dissoluta,
Onde até Deus parece ter-se ausentado no centro.

Mas eis o acto sagrado, o milagre mais puro:
Não a revolta estéril que consome e queixa,
Mas a paz que se tece sobre o antigo muro,
O perdão que não absolve, mas que liberta e deixa.

A dor não parte, faz-se cicatriz, geografia,
Mapa de um naufrágio que a alma sobreviveu.
Já não é ferida aberta, é sabedoria,
É o preço que se pagou por ser Luz que nasceu.

E assim, Conceição, tua voz, suave e forte,
É o hino das almas que quebraram a algema.
Não cantas a dor, cantas a sorte
De teres encontrado, em ti, o supremo sistema.

 

Cada testemunho é um raio a rasgar a noite,
É um “não” que ecoa nos porões da humanidade.
É a recusa da corrente, o fim do aperto,
É a verdadeira: na própria dignidade.

Por isso, esta poesia é uma vela acesa,
Em honra da criança ferida, da adulta sábia.
A tua libertação é uma nobre empresa
Um canto de guerra contra a mais torpe mentira.

Hoje, não és a que calou. És a que fala.
E ao falares, quebras os ferrolhos do medo preso.
A tua luz, sobre a podridão, se aviva e se iguala
À coragem dos santos, dos justos, dos verdadeiros íntegros.

E nada, jamais, apagará esta chama.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil. O que mais preocupa não é só o crescimento: é o facto de que, ano após ano, a sociedade se habitua à estatística e não se indigna como deveria.

A realidade portuguesa

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1).

Um problema global, não apenas alemão ou português

Ainda que estes números se refiram especificamente à Alemanha e a Portugal , é fundamental sublinhar que o abuso sexual infantil é uma realidade mundial. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 5 mulheres e 1 em cada 13 homens afirma ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante a infância.

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado.

A cegueira da sociedade e a responsabilidade dos media

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas.  Muitos casos de abuso sexual com crianças dão-se no ambiente familiar e de amigos. É mais fácil fingir que não vemos. É mais cómodo acreditar que são “casos isolados” e não um fenómeno estrutural.

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores. Cada omissão, cada desvio de olhar, cada desculpa serve de escudo para que crimes continuem a ser cometidos.

Também o jornalismo não pode fugir à sua responsabilidade. Com demasiada frequência, a cobertura mediática do abuso infantil transforma-se em mais uma notícia de choque que dura 24 horas e desaparece no rodapé. O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação. O resultado é uma sucessão de títulos que chocam, mas pouco transformam.

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos.

Uma questão de dignidade e urgência de uma mudança

O combate ao abuso infantil não se resume a estatísticas nem a reportagens esporádicas. É preciso investir em mecanismos de prevenção e de denúncia eficazes e acessíveis, em programas de educação que ajudem crianças a reconhecer situações de risco, e em apoio psicológico que não revitimize quem já sofreu.

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares.

Enquanto a sociedade preferir olhar para o lado e continuar a tratar o abuso sexual infantil como uma vergonha escondida em vez de um crime hediondo a ser combatido, estaremos todos, sociedade, política e comunicação social, a falhar com aqueles que menos se podem defender. Precisa-se de uma mudança de consciência colectiva. É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O número, porém, vai muito além das estatísticas policiais. O mesmo estudo do INE estimou que cerca de 176 mil adultos entre os 18 e 74 anos sofreram abuso sexual antes dos 15 anos. Destes, mais de 70% nunca falaram com ninguém sobre o que aconteceu; apenas 6,6% chegaram a recorrer a entidades oficiais.

“Os números mostram que continuamos a ter um problema de subnotificação gravíssimo. A criança muitas vezes não encontra um adulto em quem confie para revelar o que sofreu”, afirmou a diretora executiva da UNICEF Portugal, Beatriz Imperatori. Segundo estatísticas policiais (INE): Em 2024, registraram-se 3.237 crimes contra menores, com 1.041 denúncias de abuso sexual infantil (32,2%) e 1.033 casos de violência doméstica (31,9%)

Cerca de 176 mil pessoas entre 18 e 74 anos relataram ter sido vítimas de abuso sexual na infância (até 15 anos); entre as mulheres, prevalência de 3,5%; homens 1,1% ine.ptDiário de Notícias.

A UNICEF Portugal calcula que até 140 mil crianças podem ser vítimas de abuso sexual infantil, segundo projeções com base nos dados da OMS Observador.

Portugal está entre os piores da Europa em proteção jurídica às vítimas. Os prazos de prescrição são considerados inadequados, comparativamente a países com medidas mais protetivas ObservadorExpresso.

 

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A TRIBUNA DE AR DE BRUXELAS

Dizia-se que na Cidade da Névoa os oradores não tinham pés. Caminhavam sobre o ar, não como santos, mas como marionetas sustentadas por cordas invisíveis. Chamavam-se a si mesmos Corifeus do Amanhã e, em todas as ocasiões, repetiam discursos tão bem polidos que já não tinham rosto, apenas brilho.

Nas praças, os cidadãos viam folhas verdes caindo dos palácios elevados. Eram belas, frescas, e diziam ser fruto de grandes plantações. Mas ninguém encontrava as árvores. “A colheita está garantida!”, proclamavam os corifeus. O povo aplaudia, embora não se lembrasse de ter semeado nada.

No alto, os oradores vestiam mantos de valores e fatos engravatados que ondulavam como bandeiras. Não traziam fardas, o seu uniforme era o dogma, programa. E, em vez de luz, brandiam verdades afiadas como lanças, que lançavam ao vento para que o vento as trouxesse de volta, intactas.

Diziam agir pelo futuro, mas bebiam apenas do passado, um passado que, nas suas bocas, se disfarçava de novidade científica. Semeavam joio nos campos invisíveis e, quando a fome vinha, alimentavam-se de pães que ninguém sabia de onde vinham, mas que tinham o sabor amargo da consciência perdida.

Um velho da cidade, que todos apelidavam de Guardador de Memórias, aproximou-se certo dia e perguntou:

– E se deixassem cair a lança e pegassem na enxada?

Riram. O riso deles tinha o som seco de galhos mortos.

Com o tempo, o povo começou a reparar que a democracia, que antes era altar e espelho, se tornara um escudo que cegava quem o erguia. E, nas noites mais silenciosas, alguns juravam ouvir o canto do cuco, o pássaro que deposita o ovo no ninho alheio e segue viagem.

Foi então que, sem aviso, a névoa começou a rarear. O chão voltou a ser visível. E muitos descobriram que os corifeus, afinal, tinham pés, mas estavam sujos de lama.

Nessa manhã, não houve folhas a cair. Nem pão a repartir. Apenas a terra nua, esperando quem tivesse coragem de plantar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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DANÇA NA FEIRA / TANZ AUF DEM MARKT

O dia canta um som de feira e árvores,

Der Tag klingt nach Markt und Bäumen,

e no rumor, um apelo, um regresso a ti.

und im Raunen, ein Ruf, zurück zu dir.

O silêncio é um copo tão fundo e liso

Die Stille ist ein Glas, so tief, so eben,

que bebo o eco da capela dentro de mim.

darin trinke ich das Echo der Kapelle in mir.

 

 

E sem pensar, levado por esse canto,

Unbedacht, geführt von diesem Gesang,

abraço a sombra que dança ao meu lado.

umarm’ ich den Schatten, der an meiner Seite tanzt.

Gesto que foi colheita, não quebranto,

Eine Geste der Ernte, kein Zwang,

um passo de um baile já há muito ensaiado.

ein Schritt aus einem längst geprobten Tanz.

 

 

O sol delira. E nos óculos escuros

Die Sonne taumelt. In den dunklen Gläsern

da donzela, um sorriso doce e leve, acende.

des Mädchens zündet ein süßes, leichtes Lächeln.

E o brilho das suas formas, puras,

Und das Leuchten ihrer klaren Formen

numa onda de luz, a mim chega e entende.

erreicht mich in einer Welle von Licht, versteht mich.

 

 

A gravidade dos óculos da donzela

Die Schwere der Brille des Mädchens

foge de um sorriso meu, largo e solar,

entweicht meinem weiten, sonnigen Lachen,

que lhe fala de fibras fortes, e nela

das von starken Fasern spricht und in ihr

faz brotar um desejo de se deixar levar.

erblüht das Verlangen, sich tragen zu lassen.

 

 

E então a troca, o passo súbito, o absurdo,

Dann der Tausch, der plötzliche Schritt, das Absurde,

o riso que é um lance, um jogo igualitário.

das Lachen – ein Wurf, ein Spiel unter Gleichen.

Fica um brilho no ar, um ritmo surdo,

Ein Glanz bleibt in der Luft, ein leiser Rhythmus,

o compasso partido de um só itinerário.

der gebrochene Takt eines einzigen Weges.

 

 

Dois corações, agora sócios no mesmo verso,

Zwei Herzen nun Partner im selben Vers,

numa dança que o Eros tece, fina e sem par,

in einem Tanz, den Eros spinnt – fein, unvergleichlich,

onde o que é dela em mim encontra o inverso,

wo ihres in mir sein Gegenteil findet,

e o que é meu nela se faz dançar.

und meines in ihr sich zum Tanz entfaltet.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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Elegia dos Muros

(Lágrimas do tempo entre Gaza e Jerusalém)

Entre muralhas arde o sol ferido,
no pó da história o sangue se derrama;
Gaza e Israel, dois rios divididos,
se buscam sempre, mas no meio a mesma chama.

Mãos são raízes presas na penumbra,
olhos, espelhos de uma dor partida;
o tempo curva o peso da lembrança,
mas não detém a marcha desta vida.

Israel cerca o fogo da negação,
Gaza ressoa em gritos sem perdão;
o povo, sempre o povo, se consome,
prisioneiro de mapas e de nome.

Se a voz nascesse pura e sem barreira,
se o olhar fosse ponte verdadeira,
flores murchariam no concreto frio,
e a história seria apenas o rio.

Mas o destino é férreo, colonial,
forja alianças no silêncio hostil,
traça nos céus constelações de exílio,
marca na carne o peso desleal.

E no entanto, no meio de pó e chama,
surge um fio de luz que nunca inflama:
vida que insiste em dançar no abismo,
chama que arde contra o fatalismo.

Talvez um dia os povos, não os mapas,
ergam seus cantos contra as frias capas;
talvez com lágrimas, mãos e memórias
reergam vivos o destino e as histórias.

Por fim a dor grávida de dois povos,
em tempos de respiração mais livre,
rasgada na racha cruel da dor,
trará à luz o amor que sempre vive.

E então o ódio murchará, cansado,
como flor que resiste ao duro concreto;
e a história, por um instante suspensa,
será apenas o sopro de quem ama.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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